OUVINDO O “TRENZINHO CAIPIRA”, DE HEITOR VILLA-LOBOS,
ASCENSO FERREIRA E FERREIRA GULLAR, NA VOZ DE MARIA BETHANIA.
Antônio Campos
O guarda
da Estação dá o último apito de saída. E haja o suporte do limpa-trilhos
a limpar. E haja limpa-trilhos a limpar e trilhar. E haja rodas-guia a
guiar. E haja lubrificante do chassi a lubrificar. E haja balança de
equilíbrio de truques a equilibrar. E haja manga de eixo a balançar. Eu
vejo a alavanca de equilíbrio das rodas a equilibrar e sinto o feixe de
molas a sustentar. Agora, sim: chegou a vez das rodas de tração a
funcionar. E ouço as rodas do trem lentamente a rodar.
Bastou
abrir a janelinha para ver o passageiro lento no seu caminhar, todos
disseram: ele perdeu a hora da partida! A cena me faz lembrar um verso
de Cora Coralina: O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a
caminhada. E me surpreendo, vendo numa Lisboa distante, no Mosteiro de
São Bento, imagem remota passando rapidamente pela janela mágica desse
trem, o lema da Escola de Sagres: NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É
PRECISO. Da janela desse trenzinho de Interior, (olha o trem em
movimento!!!) dava para ver a noiva triste da Estação, beijando com o
seu olhar saudoso e com gestos de mãos o noivo que se vai. Lencinho
branco acenando como num poema parnasiano, embora seu choro seja
barroco. Tantos beijos, tantos beijos no seu anel de noivado. E vejo o
guarda da estação dizer à triste moça: tenha cuidado, minha doce
senhora, saia da plataforma!!! O trem já está em andamento, não chore em
vão, seu noivo nunca mais vai voltar. E não torne ainda mais triste o
passar de vagões por esta estação. Isso aqui parece uma saudade feita
de ferro sobre os trilhos do sem fim, e olhe como vem à lembrança o
poeta do desassossego!!!. (A sapata de freio, a roda de arrasto e a
cruzeta do trem estarão afinadas com o condutor?)
E vejo uma
jovem mulher à espera do amante que também não voltará jamais. (Como
são flamejantes o seu olhar!). Nem por uma sorte inesperada do Destino
ele voltará. Nem pela força dos Ventos Íngremes da Natureza, nem pelas
rezas dos anciãos do lugar, nem pelos feitiços das feiticeiras das
encostas e matas da cidadezinha. Onde mais ele poderia estar?
E vejo a
esfinge de outra mulher, filho novinho ao colo à espera do pai (outro
que também nunca mais chegará). E vejo uma velha devota à espera do Pai,
do Filho e do Espírito Santo, a Tríade Superior, como exclamaria nesse
instante um velho iniciado nas hostes de Plutarco. (Chegou a hora de
testar a caldeira, a fornalha e a válvula de segurança). E vejo o
cego, confiante no seu cão-guia, querendo entrar no trem, mas como!!! –
se a máquina de ferro já está em movimento? O animal com seus gestos
humanitários, me parece estar perdendo (pela velhice) as faculdades de
guia de cego. Esse quadro parece deixar todos passageiros comovidos. O
que será desse homem sem os olhos do seu cão? Uma cena para ser pintada
por um Cícero Dias, ainda mais legendada por um Mauro Mota, mas eles
pegaram outro trem.
E vejo um
jovem mascate com roupa de tons cáqui e gorro pardo na cabeça, a vender
apressadamente umas broas caseiras de goma, porque o maquinista não
espera. “Olha broa de goma, olha água fresquinha de beber, tirada da
cisterna!!!” Mas o que está na verdade no seu tabuleiro (o menino de
coração nobre e suas astúcias!) não são broas de goma, são um amontoado
de cantigas de ninar escritas em papel, aquelas que desapareceram para
sempre. (Tinha de tudo no tabuleiro do menino, menos aquela cantiga do
Boi da Cara Preta. Ou seja, você já reparou que as cantigas de ninar
soam mais como uma ameaça do que algo relaxante? Na verdade, as cantigas
de ninar não foram feitas para ensinar ou para dar medo, já que o seu
filho não vai se lembrar de nada, ou entender o que você quer dizer. As
cantigas foram feitas apenas para embalar a criança até que ela durma
profundamente e se aquiete quando você começar a cantar).
E vejo uma
mulher vestida de branco e lenço rubro na cabeça, estranhamente a sair
do vagão com a pressa dos ansiosos, e nele deixando os seus mínimos
pertences, até a sua pequena caixa de retoques, como se, longe da
plataforma, fosse rever o que na Estação jamais encontraria. (As rodas
do trem parecem ainda mais aceleradas, agora não vejo, apenas sinto: o
tempo possui apenas uma realidade: a do instante, que dura menos que um
raio solto no infinito escuro. Mas há um tempo que não passa jamais, o
da cerimônia do ADEUS). “Ó estações, ó castelos!/Quando tu partires,
enfim/Nada restará de mim./Ó estações, ó castelos!” – Ó Jean Nicholas
Arthur Rimbaud!!!
E vejo
agora, cruzando os trilhos da estação, não sei se saindo ou chegando,
uma bela mulher de cabelos negros, um rosto de beleza singular, como
aqueles raros semblantes que eternizam o momento único das nossas vidas.
(Parecia saída de um conto de fadas. O vento lhe despiu os membros, as
brisas agitaram-lhe as vestes e os cabelos). Ainda bem que o maquinista,
que sabe tanto de fagulhas soltas no ar, conduz a grande máquina em
velocidade escalar. E o foguista deixa por instantes de colocar lenha na
imensa caldeira, não mais alimentando as engrenagens de ferros e
quimeras.
E vejo
perto de mim a doce filha de Dona Canô, a louvar o trem que nunca vi,
porque ele passou depressa na minha estação imaginária (como o trem da
vida), levando um menino e no coração dele um sonho impossível de
ilustrá-lo nesta hora também imaginária, tamanho os seus sortilégios.
(Alguma feiticeira nesse instante teria largado o seu feitiço sobre o
vigia solitário da Estação, que adormece profundamente, sem que consigam
acordá-lo. O que, por favor, significa isso nas metáforas aqui
alongadas? Ainda não sei porque o homem perto de mim, neste vagão cheio
de tantos mistérios, lê – indiferente a tudo – o seu jornal, tudo indica
de outros dias imprecisos; e porque outro viajante desse trem não
consegue até agora acender com o fogo do isqueiro a ponta do
cigarro).
E vejo o
homem fardado às três horas da tarde, andando no meio dos vagões com a
lanterna acesa. E vejo o ponteiro mestre sinalizador do relógio da
estação parar exatamente às 3 horas da tarde. E sinto como num sopro
inesperado da memória, a lembrança do poeta de Andaluzia, porque foi,
nesta, a hora da sua covarde execução pelas costas, naquele fatídico
momento em que o sol de Andaluzia chegara ao auge da sua vigorosa
ascensão Sem julgamento, como foram executados no meu país, tantos
jovens, tantos sonhadores como ele por uma Nação mais digna e justa para
os seus filhos.
E vejo um
menino, sozinho, na Estação, (o trem a vapor ainda no seu lento
caminhar), a olhar para mim com aqueles olhos inquietos que jamais hei
de esquecer. Parecia mais o olhar daquele menino soldado, ainda tão
criança, das forças armadas de um certo império negro africano. Não
saberia dizer com precisão em que ciclo de encarnação o havia visto
tantas vezes, ou apenas num sonho ou numa vigília. Como era lindo!
(Nesse instante, os gatos plantonistas da Estação, todos de cor preta,
fizeram um circulo ao redor do menino – acho que mais de 20 gatos –
todos miando numa sonoridade que jamais vi entre os bichinhos de sua
espécie.)
Vejo o
trem, quase chegando na curva nebulosa do túnel, onde tudo
aparentemente ficara para trás, a densa nuvem de vapor negro e a fuligem
expedida por sua chaminé, a estação e a cenografia aqui retratada, até o
foguista que estava embriagado, o chefe com o seu boné sobre o peito, o
sinaleiro com a sua bandeira não mais para quê, e a hélice do relógio
do tempo parada de forma inesperada como um raio. Nesse instante, um
desses avatares que os deuses preferem mantê-los ocultos, deu uma rajada
de ventos que, de tão forte, o trem mal fazia sair do lugar, tamanho o
seu balançar. Parecia uma galé quando o vento sopra no cais.
Bem sei
que essa cenografia toda, qual filme chapliniano de cinema mudo (feito
todo em câmera lenta, com perfuração de bitola à antiga) tudo não durou
mais de um minuto, tempo para dar consistência de avanço à locomotiva. E
vem de repente à memória umas reflexões de Henri Bergson que li (era
ainda muito jovem, na casa de meu pai): no DURAÇÃO E SIMULTANEIDADE.
“ (…) Caso se trata de um trem movendo-se na via férrea, aceita-se
falar de reciprocidade enquanto o movimento permanecer uniforme: a
translação, dizem, pode ser atribuída indiferentemente à via ou ao
trem; tudo o que o físico imóvel sobre a via afirmar acerca do trem em
movimento poderia ser igualmente firmado acerca da via, que passa a ser
móvel, pelo físico que passou a ser interior ao trem. Mas basta a
velocidade do trem aumentar ou diminuir, bruscamente, basta o trem
parar: o físico interior ao trem sente uma sacudida, e a sacudida não
tem uma duplicata na ferrovia. Portanto, não mais reciprocidade quanto à
aceleração: ela se manifestaria por fenômenos dentre os quais ao menos
alguns diriam respeito a apenas um dos dois sistemas”.
Vejo a
chegada repentina de um vendedor de pequenos espelhos. Mas não são
espelhos o que ele traz na sacola, são molduras vazias e minúsculas de
espelhos. Uns com olhos de serpentes gravadas outros sob a forma de
espadas. E vejo o estranho vendedor a dizer aos tantos compradores:
“Para que os senhores desse trem não se vejam nem se olhem nunca mais”.
Antônio Campos
Advogado, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras
e curador da Fliporto
Advogado, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras
e curador da Fliporto
Contato: camposad@camposadvogados.com.br
By: Blog Fliporto
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